Andei a escrever mais ou menos isto esta semana. Sei que pode parecer parvo ou descontextualizado, mas apetece-me. Porque também é um bocadinho de mim. Aliás, pensando melhor: é tudo meu, meu e meuzinho, porque sou eu quem faz tudo :)
Todos temos paixões mais ou menos fortes. Uns gostam de futebol e passam horas agarradinhos ao ecrã de um qualquer canal de televisão, outros gostam de apreciar a natureza fazendo expedições a verdadeiras delicias para a vista . Eu gosto de genética e – imagine-se! – tenho o prazer de fazer da minha paixão a minha forma de vida. Há lá coisa mais agradável?
Muitos dirão que é um privilégio. Eu sinto-o como uma conquista (..)
A terapia génica consiste, em termos muito gerais, na alteração do padrão genético de um indivíduo com a manipulação dos seus genes. O objectivo principal desta técnica é a cura de doenças hereditárias cujo aparecimento deriva do mal-funcionamento de um gene ou da codificação errada de uma proteína, fazendo com que estes funcionem correctamente.
Existem dois tipos de terapia génica a serem desenvolvidos; um provém do uso de vectores provenientes de partículas virais, aproveitando as capacidades infecciosas dos vírus, enquanto é também possível introduzem ADN para o interior de células esperando que este, por processos de recombinação homóloga, encontre o seu lugar no genoma celular.
Neste momento existem ainda muito poucos casos humanos cujas deficiências genéticas tenham sido totalmente curadas – 14 no total na Europa. As razões determinantes para a (ainda) pequena percentagem de pessoas curadas prendem-se com factores burocráticos já que os testes de terapia génica em humanos demoram cerca de 7 a 8 anos a ser devidamente autorizados, e relacionados com a própria segurança dos vectores utilizados; para além de ainda haver um risco enorme de recombinação viral existe ainda o problema da inserção do vector poder ocorrer numa área do genoma que potencie a ocorrência de cancro, como infelizmente já aconteceu.
No meu projecto encontro-me a desenvolver um vector para doenças do foro sanguíneo, especificamente a anemia falciforme e a talassemia, doenças resultantes da insuficiência de haemoglobina. Para tal, estou a realizar terapia génica com o uso de partículas virais, mais especificamente o vírus responsável pelo sindroma de imunodeficiência adquirida (VIH). A este tipo de vectores chamamos lentivirus.
O vector que estou a produzir contém uma sequência descoberta há uns anos por que se sabe que controla/aumenta a expressão do gene responsável pela produção da hemoglobina . Um vector contendo esta sequência potência as células aonde for integrado a exprimir a proteína, e por conseguinte a curar a deficiência genética.
Contudo, nem tudo é tão simples como á primeira vista poderá parecer. No meu laboratório usamos técnicas virais porque o uso de técnicas não virais é menos eficiente, e por conseguinte muito mais limitado. Usamos então lentivirus dada a dimensão da sequência que referi anteriormente que só pode ser acomodada neste vectores especialmente grandes, e porque até ao presente estes têm mostrado ser o mais competente meio de entrega de genes terapêuticos a células mamárias. Contudo, este tipo de vector apresenta-nos um problema que necessitamos de contornar – os lentivirus integram-se aleatoriamente no genoma humano podendo interromper a transcrição de um gene ou potenciar o aparecimento de mutações cancerígenas, algo que queremos evitar. Para resolver este problema desenvolvemos no passado aquilo a que chamamos os lentivirus de integração-deficiente, cuja proteína que potencia a integração no genoma é mutante (modificada).Os vectores produzidos com esta técnica existem assim como formas circulares de ADN no núcleo da célula.
O problema parece assim, estar solucionado. E de facto estaria caso as células aonde o vector irá ser depositado fossem células terminais e não se dividissem, como as células neuronais ou musculares. Contudo, recordemo-nos, este projecto foi desenhado para resgatar células do foro hematológico, que se dividem pelo menos uma vez no espaço de 24 horas. A divisão celular é um processo conhecido por mitose (ver caixa), cuja desfragmentação da cromatina e separação de cromatídeos levará eventualmente á diluição do vector e á sua consequente perda. A expressão terapêutica é então perdida, pelo que a “cura” destes vectores é apenas temporária. Como forma de colmatar este problema pensámos inicialmente usar duas sequências que foram préviamente decobertas por dois grupos individuais na Alemanha e Suiça com os quais colaboramos que se pensa que conferem níveis de estabilidade e segregação para células filhas. Estas sequências em termos gerais fazem com que o vector “se agarre” á cromatina, mesmo que desfragementada. A replicação do genoma em teoria replicará o próprio vector como se este fosse parte integrante do próprio genoma, sem estar inserido em nenhuma região cromossomal. Os estudos com estas sequências foram apenas realizados com fragmentos não virais de ADN pelo que é ainda incerto se estas sequências irão potenciar o permanência do vector no ambiente celular – caso isso não se verifique será também uma parte integrante deste projecto descobrir novas sequências que o façam, muito provavelmente provenientes de regiões conhecidas como origens da replicação, que permitam estabilizar o vector no citoplasma celular.
Agora que escrevo tudo isto percebo quanto o projecto assim apresentado até parece simples. Nada mais distante da realidade. Até porque o manuseamento de genes trás sempre consigo complicações do foro ético. Sabemos que ao permitir a alteração de genes no estamos a abrir uma porta para um problema que irá eventualmente tornar-se uma realidade; neste momento apenas a terapia génica de células somáticas é permitida. Quaisquer alterações ao nível dos gâmetas são estritamente proibidas sendo púniveis pela lei. Principalmente porque estas implicariam a alteração definitiva do padrão genético de uma população, e não sabemos quais as consequências que daí poderiam advir. Consigo imaginar muito boa gente a desejar filhotes de olhinhos azuis e com uma inteligência para além do normal – seria moralmente aceitável? A investigação genética, como todo o mundo cientifico, deve avançar com cuidado e com coerência. Há uns tempos houve um grupo de cientistas que se empenhou em criar uma espécie de arroz rico em vitamina A, para que as populações do mundo confinadas ao consumo de arroz, maioritariamente a África sub-Sahariana, podessem combater a insuficiência vitamínica e lutar contra a permanência de problemas oculares. Estaremos neste caso específico a utilizar o nosso conhecimento para algo verdadeiramente útil? No meu entender ao permitirmos o desenvolvimento deste tipo de “produtos” geneticamente modificados, estamos a mascarar a verdadeira essência do problema; em vez de tentarmos combater a insuficiência vitamínica do arroz deveríamos perguntar-nos porque é que estas populações vivem exclusivamente de arroz e tentar combater essa deficiência. A ciência só faz sentido se vier melhorar o nosso bem-estar, não deve nunca servir como um escape.
Claro que estas são e serão sempre questões que tornam a genética num meio tão fascinante. A verdade, como de resto já disse anteriormente, é que não posso ser mais feliz e sentir-me mais realizada com aquilo que faço. Mas reconheço que houveram todo um conjunto de decisões que foram tomadas no momento certo para que tudo isto hoje fosse possível. Nem sempre foi fácil. Não soube sempre como agora aquilo que realmente gostava, descobri-o lentamente, aos poucos juntando o puzzle das coisas que me faziam mais feliz. Lembro-me de aulas intensas com o Professor Walter Machado e a professora Lurdinhas no laboratório de biologia (ESSMO), aonde ouvi pela primeira vez falar de conceitos como hereditariedade e replicação e aonde extra-aula nos divertia-mos a dissecar rãs e sardões. Nascia assim o bichinho que foi ficando e perdurando, saber mais, perceber como funciona, perceber o porquê. Considero mesmo essas aulas como a motivação, a influencia do meio que me rodeou que deu força ao meu gosto inato pela genética. Aquilo que somos depende inevitavelmente de gente que em momentos certos nos rodearam, não esqueço isso. Muitas vezes para chegarmos a paisagens bonitas passamos por terrenos descampados enfasticiosos. Mas valeu e valerá sempre a pena, porque continuo a ser feliz todos, todos os dias.
1 comment:
Confesso que só hoje é que tive tempo (e paciência) para ler este texto. Já o tinha lido da vertical e pareceu-me interessante. Gostei, principalmente, da parte em que afirmas que "A ciência só faz sentido se vier melhorar o nosso bem-estar, não deve nunca servir como um escape." O caso que referes é paradigmático.
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